12 maio 2025

O que explica o enfraquecimento da EJA no Brasil ano após ano?

Em entrevista, a professora Maria Clara Di Pierro, especialista em EJA (Educação de Jovens e Adultos), explica os motivos da queda da modalidade, que perdeu 1,2 milhão de matrículas em uma década e segue marcada por desigualdades


por Ana Luísa D'Maschio  15 de abril de 2025

Enfraquecimento, queda, retrocesso, esvaziamento. São esses os verbos que vêm marcando a história recente da EJA (Educação de Jovens e Adultos) no Brasil. Os dados do Censo Escolar 2024, divulgados na quarta-feira (9), registram 2.391.319 matrículas – uma redução de 198 mil alunos em comparação a 2023, o menor número da série histórica. Em 10 anos, a modalidade perdeu 1,2 milhão de vagas.

O Brasil ainda tem 9,3 milhões de pessoas com 15 anos ou mais que não sabem ler ou escrever um bilhete simples, segundo a Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) de 2023. Desse total, 8,3 milhões têm mais de 40 anos. Entre aqueles a partir dos 60 anos, a taxa de analfabetismo chega a 15,4% – quase o triplo da média nacional.
Embora também voltada para os idosos, a EJA é composta majoritariamente por estudantes com menos de 40 anos (63,9% das matrículas). A modalidade também concentra o maior percentual de alunos pretos e pardos (76,8%), reflexo das profundas desigualdades sociais e raciais na educação brasileira.

O que explica a falta de oferta?

Para a professora Maria Clara di Pierro, da Faculdade de Educação da USP (Universidade de São Paulo), o enfraquecimento tem relação direta com a dissolução de políticas públicas nos últimos anos. “Não podemos nos esquecer que passamos por um período de desmonte das políticas da EJA. Os incentivos ainda têm sido insuficientes”, explica.

Ela se refere, especialmente, ao período dos governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro, quando a Secadi (Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão) foi extinta. A medida que comprometeu o fluxo de programas voltados à modalidade, como noticiado pelo  em uma série de reportagens.

Mesmo com a retomada da Secadi, em 2023, e com o lançamento do Pacto Nacional pela Superação do Analfabetismo e Qualificação na Educação de Jovens e Adultos, em junho de 2024, os impactos ainda não se refletem em números. O pacto federal prevê apoio técnico e financeiro a estados e municípios para ampliar a oferta de EJA, além de ações como o Programa Pé-de-Meia, que oferece incentivo financeiro para estimular a permanência de estudantes adultos em sala de aula.

O país também está longe de atingir a meta 10 do PNE (Plano Nacional de Educação) que previa, ao menos, 25% das matrículas da EJA integradas à educação profissional até 2024. Em 2023, esse número era de apenas 4,7%, mostra o Painel de Monitoramento das Metas do PNE. “É necessário corrigir alguns erros no caminho”, ressalta Maria Clara. Para ela, a reconstrução da EJA passa por políticas contínuas, valorização dos educadores e ampliação das estratégias de acesso, sobretudo para a população mais vulnerável, que depende dessa oportunidade para garantir o direito básico à educação. Confira suas recomendações a seguir.
Mulher sorrindo com lenço no pescoço

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Quais fatores têm sido determinantes para a queda expressiva nas matrículas da EJA nos últimos anos?

Maria Clara Di Pierro – A queda das matrículas vem se processando desde 2006, com uma intensidade maior nos últimos oito anos. Trata-se de um fenômeno multifatorial. Eu destacaria quatro fatores interligados. O primeiro é mais geral e está relacionado às condições de vida da população e à ausência de horizontes de mudança social que motivem as pessoas a buscar a elevação da escolaridade na vida adulta. O segundo fator envolve os erros e desacertos nas políticas públicas. O terceiro é a ausência de uma cultura do direito à educação ao longo da vida, e por último, a inadequação da oferta. A interação dessas quatro dimensões tem sido muito intensa na última década no Brasil.

Poderia explicar melhor os quatro fatores?


Maria Clara Di Pierro – Claro. O primeiro fator, quando menciono a ausência de horizontes de mudança social, refiro-me à parte da população com mobilidade social muito restrita. Essas pessoas estão imersas na luta pela sobrevivência e não enxergam possibilidades de mudanças socioeconômicas significativas.

Uma grande parte dos estudantes da EJA vivem em uma condição de pobreza e exclusão social. Não podemos esperar que alguém que trabalha longas horas recolhendo materiais recicláveis, mesmo passando diariamente por escolas que oferecem vagas, busque a escolaridade. Essa pessoa não pode abrir mão do tempo de trabalho, e também não tem [boas condições de] moradia, saúde ou mesmo acesso à informação.

Os projetos de EJA alcançam melhores resultados quando estão integrados a iniciativas de mudança socioeconômica, como projetos de desenvolvimento rural ou cooperativas, a exemplo das associações de catadores de recicláveis em Florianópolis. A mudança social precisa ser oferecida como um horizonte para que essas pessoas se sintam motivadas a buscar a educação.
Quais os outros fatores que impedem o acesso à EJA?

Maria Clara Di Pierro – O segundo fator, que se articula ao primeiro, diz respeito aos erros nas políticas públicas. A falta de prioridade para a EJA, o financiamento insuficiente, a falta de colaboração entre os governos e a gestão equivocada, como oferecer cursos apenas no período noturno quando existem públicos, como as mulheres donas de casa, que teriam maior disponibilidade durante o dia. Além disso, a crescente oferta de EAD (educação a distância) tem seus problemas.

Maria Clara Di Pierro – Vejo como um erro das políticas públicas. Esse formato não leva em consideração que o público da EJA não possui os recursos tecnológicos necessários, nem pacotes de dados ou familiaridade com a tecnologia. Essa opção reflete a falta de vontade política dos governantes em relação à modalidade. O problema é agravado pela ausência de uma cultura que valorize o direito à educação ao longo da vida. Não há uma pressão social sobre essa questão, e a mídia também não dá visibilidade suficiente. Os gestores não enfrentam essa cobrança da mesma forma que enfrentam na educação infantil, que tem a proteção do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente).
O quarto fator se refere à inadequação da oferta, correto? Qual a sua avaliação sobre isso?

Maria Clara Di Pierro – A rigidez do formato excessivamente escolarizado, a inflexibilidade dos espaços e tempos escolares, a inadequação dos currículos e o despreparo dos educadores fazem com que a oferta de EJA seja pouco atraente. A educação não é relevante ou significativa para os adultos, que, ao não estarem sob a obrigatoriedade de frequentar a escola, não percebem um ambiente acolhedor ou condições adequadas para o estudo. Não recebem uma educação de qualidade, que os motive a continuar. Isso acaba gerando evasão.

Muitas redes de ensino têm concentrado equipes, professores e recursos para a EJA em poucas escolas. Quais os impactos dessa estratégia?

Maria Clara Di Pierro – Isso é feito, principalmente, por questões de segurança, de manutenção e para otimizar a disponibilidade de professores no período noturno. No entanto, essa centralização prejudica especialmente as camadas populares, onde a proximidade da escola à residência é crucial. Para os jovens e adultos, a territorialidade é muito importante, e, além disso, questões como custo e tempo de transporte são obstáculos a serem superados.

Em 2023, o Ministério da Educação lançou o Pacto pela EJA, com a meta de criar 3,3 milhões de matrículas e um investimento de R$ 120 milhões — o maior desde 2017. De que forma essa iniciativa ainda pode contribuir para a reversão do quadro de abandono da modalidade?

Maria Clara Di Pierro – Espera-se que o Pacto tenha um efeito positivo a longo prazo, mas até o momento, os dados do Censo de 2024 não mostram resultados significativos. Vamos ver os dados do Censo 2025 [que serão divulgados em 2026]. Mas é necessário corrigir alguns erros no caminho.Homem em pé na frente de um prédio

O conteúdo gerado por IA pode estar incorreto.Camila LimaJoão Holanda, estudante da EJA em Fortaleza (CE) em 2022: estudantes com menos de 40 anos representam 63,9% das matrículas

Quais?

Maria Clara Di Pierro – O modelo de governança do Pacto não incluiu universidades nem organizações da sociedade civil, apenas a União, estados e municípios, o que tem gerado dificuldades na implementação. Além disso, a aprovação tardia das novas diretrizes educacionais e a demora para sancionar essas diretrizes geram atrasos nas ações. São fatores que acendem uma luz amarela no sentido da necessidade de corrigir rumos do Pacto para que ele seja mais efetivo.
 – E o Programa Pé-de-Meia, também criado em 2024? Quais as expectativas? Ele tem a ver com a chamada juvenilização da EJA, com uma presença significativa de adolescentes frequentando a modalidade?

Maria Clara Di Pierro – O Programa Pé-de-Meia, de incentivo à permanência, é restrito ao ensino médio e só atende aos estudantes mais jovens da EJA. Há um público bastante jovem na EJA, como os próprios dados do censo escolar mostram. No entanto, seria importante incluir também o público do ensino fundamental, que enfrenta necessidades semelhantes.

Os dados do Censo Escolar revelam que a queda nas matrículas foi seis vezes maior na rede pública. O que isso indica?

Maria Clara Di Pierro – A oferta privada de EJA é muito pequena, principalmente porque os estudantes não têm condições econômicas para pagar. O que aparece como oferta privada no Censo Escolar está relacionado a escolas católicas, organizações não governamentais ou instituições como o SESI, por exemplo.

Por que, então, as redes públicas não conseguem ampliar a oferta?

Maria Clara Di Pierro – Os incentivos têm sido insuficientes. Vale lembrar que estamos em um período de desmonte das políticas de EJA, com o fechamento da Secadi e a reestruturação recente da coordenação de EJA. O primeiro ano do novo governo foi muito limitado nesse sentido, pois o orçamento não previa recursos para essas ações.Pessoas sentadas ao redor de mesa com cadeira

O conteúdo gerado por IA pode estar incorreto.Fredson SantosEnquanto filhos estudam, mães são alfabetizadas em projeto de EJA em Cabrobó (PE)

Algo vem sendo feito?

Maria Clara Di Pierro – O governo atual fez uma coisa muito importante que foi equiparar o fator de ponderação da EJA no Fundeb (multiplicador financeiro que determina o valor por matrícula repassado pelo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica às redes de ensino, variando conforme a etapa e modalidade educacional) ao ensino fundamental comum. No entanto, esses incentivos não têm sido suficientes para motivar os governos estaduais e municipais porque o papel da União é um papel de indução. A União não tem escolas próprias, exceto os Institutos Federais, que cuja oferta de EJA existe, mas é muito diminuta.
O que é fator de ponderação? No Fundeb, o fator de ponderação define quanto cada matrícula escolar vale na distribuição dos recursos, variando conforme a etapa e a modalidade de ensino. No caso da EJA, esse fator era significativamente menor do que o atribuído ao ensino fundamental comum, o que significa que as redes de ensino recebiam menos recursos por aluno da EJA. Essa diferença impacta diretamente na oferta da modalidade, pois desestimula estados e municípios a investirem em sua ampliação, contribuindo para o enfraquecimento de uma etapa que atende, em sua maioria, pessoas em situação de vulnerabilidade social.

É um modelo adequado?

Maria Clara Di Pierro – Sim, e deveria ser ampliado. O modelo da educação integrada, que combina formação profissional com elevação de escolaridade, é um modelo desejável, embora não esteja isento dos problemas de evasão e de permanência, que outras modalidades também enfrentam. De qualquer maneira, eu acho que é preciso ampliar os incentivos.
 

A ampliação dos incentivos é uma proposta do Pacto Nacional pela Alfabetização, não?

Maria Clara Di Pierro – Exato. O Pacto está tentando ampliar os incentivos para que os governos subnacionais invistam na EJA. O papel do governo federal é prover assistência técnica e capacitação, seja de gestores, seja de educadores. Porem, se os incentivos positivos não estão sendo eficazes, eu diria que a ampliação seria desejável, já que as metas dos planos não estão sendo cumpridas.

Qual seria a solução?

Maria Clara Di Pierro – Seria desejável que o Ministério Público fosse mais ativo, fiscalizando a conduta dos governantes, e o MEC (Ministério da Educação) utilizasse mecanismos de indução mais efetivos. Durante o segundo governo Lula, o governo federal criou o PDE (Plano de Desenvolvimento da Educação), com recursos vinculados a compromissos como a manutenção da oferta de EJA. No entanto, os gestores não cumpriam esse requisito e continuavam recebendo recursos. Será necessário implementar sanções para garantir que as metas da EJA sejam atendidas.

Sabemos que a maioria dos estudantes da EJA enfrenta múltiplas demandas, como trabalho, cuidados familiares e responsabilidades domésticas. Quais estratégias poderiam tornar essa modalidade mais atrativa, acessível e compatível com a realidade desses cidadãos?

Maria Clara Di Pierro – É necessário maior controle social para garantir políticas públicas eficazes, como a oferta de refeições, transporte escolar, material de qualidade e professores bem formados. Essas condições são fundamentais para a permanência dos alunos.
Homem e mulher cortando bolo

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O que todo professor precisa saber para trabalhar na EJA?


Homem segurando livro

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Grandes pensadores da educação popular na América Latina


Tela de computador com texto preto sobre fundo branco

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9 livros para entender (e estudar sobre) a EJA



Paulo Freire para crianças


Qual sua avaliação sobre as novas diretrizes do Conselho Nacional de Educação homologadas também no dia 9 de abril, quando foi divulgado o Censo Escolar?

Maria Clara Di Pierro – Ainda não tive tempo de aprofundar a análise dessas novas diretrizes, mas as anteriores eram muito problemáticas e precisavam ser revogadas. A nova regulamentação restringe o uso da educação a distância na EJA de ensino fundamental, permitindo-o apenas no ensino médio e com uma carga de no máximo 50%. Isso ocorre em um momento em que projetos como o do SESI (Serviço Social da Indústria), por exemplo, continuam oferecendo EJA a distância [80% de EAD, e 20% presencial], contrariam essas novas normas. O desafio agora é resolver essa contradição.
 

O PNE previa acabar com o analfabetismo até 2024, mas ainda temos 9,3 milhões de analfabetos. No país de Paulo Freire, é uma utopia dizer que essa meta será alcançada?


Maria Clara Di Pierro – O analfabetismo está profundamente associado à exclusão social e à desigualdade. Para erradicá-lo, é preciso antes superar a pobreza e garantir condições dignas de trabalho e renda para a população. Sem isso, será difícil alcançar essa meta. A solução depende tanto da inclusão social quanto de políticas educacionais adequadas.
Matrículas da EJA por ano (de 1996 a 2024)
1996: 2.752.214
1997: 2.881.770 (+ 129.556 matrículas em relação ao ano anterior)
1998: 2.881.231 (- 539 matrículas em relação ao ano anterior)
1999: 3.071.906 (+ 190.675 matrículas em relação ao ano anterior)
2000: 3.410.830 (+ 38.924 matrículas em relação ao ano anterior)
2001: – 3.777.989 (+ 367.159 matrículas em relação ao ano anterior)
2002: 3.779.593 (+ 1.604 matrículas em relação ao ano anterior)
2003: 4.403.436 (+ 623.843 matrículas em relação ao ano anterior)
2004: 4.577.268 (+ 173.832 matrículas em relação ao ano anterior)
2005: 4.619.409 (+ 42.141 matrículas em relação ao ano anterior)
2006: 4.861.390 (+ 241.981 matrículas em relação ao ano anterior)
2007: 5.034.606 (+ 173.216 matrículas em relação ao ano anterior)
2008: 4.989.808 (- 44.798 matrículas em relação ao ano anterior)
2009: 4.701.245 (- 288.563 matrículas em relação ao ano anterior)
2010: 4.325.587 (- 375.658 matrículas em relação ao ano anterior)
2011: 4.082.528 (- 243.059 matrículas em relação ao ano anterior)
2012: 3.961.925 (- 120.603 matrículas em relação ao ano anterior)
2013: 3.830.207 (- 131.718 matrículas em relação ao ano anterior)
2014: 3.653.530 (- 176.677 matrículas em relação ao ano anterior)
2015: 3.491.869 (- 161.661 matrículas em relação ao ano anterior)
2016: 3.482.174 (- 9.695 matrículas em relação ao ano anterior)
2017: 3.598.716 (+ 116.542 matrículas em relação ao ano anterior)
2018: 3.545.988 (- 52.728 matrículas em relação ao ano anterior)
2019: 3.273.668 (- 272.320 matrículas em relação ao ano anterior)
2020: 3.002.749 (- 270.919 matrículas em relação ao ano anterior)
2021: 2.962.322 (- 40.427 matrículas em relação ao ano anterior)
2022: 2.774.428 (- 187.894 matrículas em relação ao ano anterior)
2023: 2.589.815 (- 184.613 matrículas em relação ao ano anterior)
2024: 2.391.319 (- 198.496 matrículas em relação ao ano anterior)

 


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